12010 - Educação e Sociedade em Rede

CIBERCULTURA

Antes de elaborar o conceito de cibercultura, é importante referir que este existe no âmbito da virtualidade. Para Lévy, o virtual pode ser interpretado à luz da compreensão e das vivências de cada um. É moldado pelo e para o ser que nele habita.

Faz parte do campo abstrato pois existe a partir da nossa compreensão da realidade. Salienta ainda que o computador é apenas um instrumento que tem a capacidade de manipular os signos da linguagem e, o que nós entendemos desse significado encontra-se na nossa cabeça.

Lévy argumenta que com o “dilúvio informacional”, emergiram novas formas de conhecimento bem como da sua distribuição, que se encarregam da mudança da sociedade em si.

Surge assim um novo universal e a cibercultura é sinónimo desta mudança. Caracteriza-se pelo "conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço" (Lévy, 1999, pág. 17).

Para o filósofo e sociólogo, a cibercultura “se constrói e se estende por meio da interconexão das mensagens entre si" (Lévy, 1999, pág. 15) e, consequentemente, origina a existência de uma inteligência coletiva que apenas existe porque cada um de nós possuiu conhecimentos diferentes. A sua mescla origina um conhecimento coletivo com a contribuição de todas as visões. Os nossos fóruns de debate e troca de ideias são um excelente exemplo desta inteligência coletiva, caracterizadora da cibercultura. São formas de gerarem novas ideias e intercâmbios entre todos os seus intervenientes.

A cibercultura coexiste com as outras, mas ela é fruto das nossas práticas, atitudes, pensamentos, perceções e leituras que desenvolvemos no ciberespaço. Permite a emergência de uma via de comunicação recíproca.

Lévy também aborda o campo da educação e defende “a aclimatação dos dispositivos e do espírito do EAD (ensino aberto e a distância) ao cotidiano e ao dia a dia da educação”. É da opinião que o sistema educacional publico deva “orientar os percursos individuais no saber e de contribuir para o reconhecimento dos conjuntos de saberes pertencentes às pessoas, aí incluídos os saberes não-acadêmicos.” (Lévy, 1999, pág. 158).

De facto, a implementação do EaD, como é o caso dos ciclos de estudo da Universidade Aberta, maximiza as potencialidades de cada um, dado que para além dos conhecimentos académicos, requer capacidades e saberes intrínsecos ao sujeito. Deste modo, o ensino aberto permite o desenvolvimento de experiências que culminam no desenvolvimento dos seus intervenientes.

Na sua teoria é também fundamentada a ideia de comunidade mundial pois considera que esta terceira etapa da evolução mantém a universalidade. "Uma comunidade virtual é construída sobre as afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um processo de cooperação ou de troca, tudo isso independentemente das proximidades geográficas e das filiações institucionais" (Lévy, 1999, pág. 127).

Gostava agora de exemplificar esta ideia de comunidade mundial, com o uso dos hashtags. Na rede social Twitter, por exemplo, o uso do # seguidamente de uma palavra chave, aproximou indivíduos no mundo virtual através de comentários e opiniões sobre determinado assunto. Geram novas manifestações culturais, sociais e comunicacionais bem como impulsionam movimentos e fenómenos que transitam da realidade, para a sua perpetuação no ciberespaço. Atualmente, as etiquetas não se restringem ao território virtual, passaram a ser exibidas em programas de televisão, anúncios comerciais e até mesmo ao vocabulário comum dos jovens.

Em suma, os hashtags como fenómeno de cibercultura preservam a ideia de comunidade universal aberta e ilimitada, com capacidade de integrar todo e qualquer movimento, quer seja real ou virtual.

"A cibercultura expressa uma mutação fundamental da própria essência da cultura." (Lévy, 1999, pág. 247).

O ciberespaço é um território infinito que abrange qualquer um que queira fazer parte dele. “as fronteiras do mundo tornam-se mais permeáveis, maleáveis, interativas.” (Lévy, 2001, pág. 153) e é com a contribuição das perceções, gostos, emoções e atitudes de cada um que se constrói a cibercultura.


Ana Couto


Lévy, P. (1999). CiberculturaEditora 34.

Lévy, P. (2001). Filosofia World. Instituto Piaget.

https://www.youtube.com/watch?v=sMyokl6YJ5U&feature=youtu.be&ab_channel=FronteirasdoPensamento


O desenvolvimento das ferramentas tecnológicas e de comunicação permitiu-nos, enquanto indivíduos, a transposição de várias componentes humanas para o mundo virtual. Refiro-me por exemplo aos hábitos, interesses conhecimentos, ou até mesmo relações. A tecnologia encurtou distâncias. Estamos hoje mais perto e ligados do que alguma vez estivemos.

Mas será que o que somos em rede transparece o nosso “eu” no mundo real?

Geidner et al (2007) revelou em estudos que, por norma, são construídas identidades virtuais aumentadas de forma a compensar a falta de comunicação não verbal ou o contacto visual. Fazer parte do ciberespaço, possibilita a criação de uma identidade virtual, podendo ela corresponder, mais ou menos, às características que apresentamos fora deste contexto. Neste sentido, o indivíduo cria uma persona para que se possa revelar aos outros (Popesco, 2019) A meu ver, a criação de um username diferente do próprio nome ou a utilização de uma fotografia que não corresponde à imagem real, implica automaticamente a criação de uma nova identidade, feita de forma consciente ou inconsciente. Fatores como a presença assíncrona permitem que haja uma maior fenda temporal entre a comunicação em ambiente virtual. Desta forma, podemos ponderadamente calcular e escolher o que queremos transmitir aos outros, facilitando a manipulação das características pessoais. (Barak, 2009)

Tal como uma marca, nós escolhemos a imagem que queremos passar. “In other words, “personal branding” is seen as the way people market themselves and their careers similar to the way companies manage their consumer brand.” (2019, p.68) O crescente uso das redes sociais potencia a dissimulação da identidade, cuja intenção pode ser encontrada em diversos aspetos.  Despoleta um efeito de desinibição online onde o individuo revela uma maior abertura pessoal quanto à natureza do conteúdo, bem como aprofunda a partilha de informações. Por outro lado, este efeito também pode conduzir a comportamentos considerados destrutivos e agressivos – Acting Out (Barak, 2009).

A comunicação ocorrida em contexto virtual é um ambiente clássico para o preenchimento de lacunas em virtude do repertório psicológico de cada um. O ser humano facilmente começa por fantasiar sobre a natureza dos outros incluindo pessoas, ambientes ou objetos, através de narrativas, conceitos, explicações, suposições ou crenças. (Barak, 2009) Ao experienciar a comunicação virtual, a imaginação permite com que as comunicações se transformem em relações com facilidade. “That is, they convert an exchange of messages into interpersonal contact, which is accompanied by a broad range of emotions” (2009, p.312) Estamos assim a assistir à virtualização das relações.

É importante salientar que o que se passa na rede é uma ampliação do contexto real em que vivemos. Seremos nós totalmente transparentes na realidade? Queremos nós ser totalmente transparentes? Concordo com as palavras de James Donnelly, numa discussão sobre o tema Crisis Communications 2.0 ocorrida em 2010, onde refere que podemos ser autênticos, devemos sê-lo, sem que tenhamos que ser totalmente transparentes. Fazendo uma analogia, Donnelly refere que uma empresa ou um produto deve ser autêntico e credível, mas não necessita de mostrar cada uma das suas cicatrizes. O mesmo pode ser aplicado aos indivíduos que coabitam em ambientes virtuais. Podemos manter a nossa autenticidade na rede, refletir a nossa personalidade ou os nossos gostos, mas isso não implica que tenhamos que ser totalmente transparentes revelando todos os pormenores sobre nós. A meu ver, uma total transparência pode também por em causa a nossa privacidade e se refletirmos sobre a questão, até que ponto somos totalmente transparentes na realidade?

Segundo Lévy (2001), “As palavras são impessoais. Os pensamentos são impessoais. As emoções são impessoais. Cremos que são “os nossos” pensamentos, mas são também os pensamentos da sociedade, da espécie, da biosfera, do universo” (2001, p. 192)

Atualmente as repercussões das nossas palavras ou atos tem um alcance maior do que alguma vez tiveram. As redes sociais colocam-nos a questão “Em que estás a pensar?” e rapidamente o que estava no nosso íntimo é catapultado para o mundo exterior a uma velocidade, por vezes, incontrolável. Este fenómeno reforça o papel de aceleração das redes digitais.

A horizontalidade das comunicações caracterizadora da sociedade em rede, promoveu o surgimento de uma “cultura participatória” (Jenkins et al, 2006) onde, num espaço de expressão livre, qualquer um pode produzir, transmitir ou receber informação. Jenkins et al (2006) enumerou quatro aspetos fundamentais da “cultura participatória”: afiliação, expressão, resolução colaborativa de problemas e circulação, “remetendo-nos para a pertença e participação dos seus membros em comunidades online suportadas pelos media sociais.” (2018, p.2)

Fatores como a reciprocidade e a colaboração entre indivíduos estimulam o sentimento de pertença ao grupo e são um terreno fértil para o aumento da partilha de interações e conteúdos. Castells (2005) sublinha que em contextos de cultura informativa e comunicacional desenvolvem-se aspetos fulcrais na socialização e maior abertura a “expressões culturais” diversas. (2018, p.9)

Surgiu a necessidade de criar um termo que descreve-se este novo fenómeno de conteúdo gerado pelos usuários da Web 2.0., “produsage” (Bruns, 2011) cujo significado remete para a construção colaborativa e continua de conteúdo existente, em busca de melhorias adicionais. (2018, p.14)

Vivemos um efeito de bola de neve com a presença da internet. Existem mais usuários, que por sua vez geram mais interações e consequentemente aumentam a produção de informação.

Mas até que ponto esta disseminação de informação é credível?

Cardoso (2006) alerta para a necessidade de haver um “domínio individual das literacias necessárias, para interagir com as ferramentas de mediação, quer das que fornecem acesso à informação quer das que nos permitem organizar, participar e influenciar os acontecimentos e as escolhas.” (2006, p.44)

O surgimento de um novo paradigma informativo requer a adoção de fórmulas que combatam as lacunas que daí advém.

 Esse esforço já tem vindo a ser feito. Num artigo publicado por Vannuchi (2018) verificou-se que em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos, incluiu o Artigo 19 - Direito à Informação que expressa “a liberdade de expressar opiniões sem interferência e de buscar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e sem limitações de fronteiras” (2018, p.169). No entanto, as mudanças tecnológicas adicionaram novas dimensões aos direitos de informação, fazendo com que o Artigo 19 não fosse suficiente para garantir o direito à informação e liberdade de expressão.

Em resposta, nos 70 foi concebido o “Direito de Comunicar” que sublinha o compromisso com a democratização da informação e com a multiplicidade de vozes, entendendo o direito à informação também como a liberdade que o individuo tem de produzir informação e não apenas consumir conteúdo realizado por terceiros. (Vannuchi, 2018)

Fisher (1982) realça a importância da ética no processo de comunicação, devendo assegurar maior justiça e equilíbrio dos recursos necessários para que haja uma comunicação eficiente.

Outro dos obstáculos relacionados com a autenticidade na rede, deve-se à distorção, mais ou menos voluntária, da informação que nela habita. Como se costuma dizer, quem conta um conto acrescenta um ponto e o fenómeno das fake news afeta cada vez mais o domínio social e político.

Podemos encontrar as motivações em interesses económicos de instituições jornalísticas (veja-se o clikbait – produção de títulos sensacionalistas cujo intuito é o aumento do número de visualizações e, por conseguinte, de receitas) ou motivações políticas e ideológicas (promoção e disseminação de conteúdo que beneficie interesses partidários). (Cardoso et al, 2018)

Segundo Cardoso et al (2018) a resolução passa por uma atuação através de políticas legislativas “de modo a resolver um problema considerado de cariz pública e de presença generalizada” (2018 p.21), implementação de regulação pelas instituições privadas (e.g., Facebook, Twitter) como a ”criação de algoritmos que condicionem a experiência do utilizador” (2018 p.23) e finalmente potenciar o desenvolvimento de uma literacia digital e cívica.

As mudanças são constantes e inevitáveis. Urge a necessidade de encontrar soluções para as questões que o século XXI coloca. 

O problema não está nas TIC nem na Internet, está sim na impreparação e desinformação à qual somos reféns. Esse é o obstáculo que deve ser combatido, para que todos possamos usufruir desta rede única que nos interliga enquanto sociedade.

Ana Couto

Barak, A., (2009) Phantom emotions: Psychological determinants of emotional experiences on the Internet. Oxford Handbook of Internet Psychology.

Bruns, A., Schmidt, J., (2011). Produsage: A Closer Look at Continuing Development. New Review of Hypermedia and Multimedia, 3-7.

Castells, M. (2005). A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Fundação Calouste Gulbenkian.

Cardoso, G. (2006). Os media na sociedade em rede. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Cardoso, G., Baldi, V., Pais, P. C., Paisana, M., Quintanilha, T. L., Couraceiro, P., (2018) As Fake News numa sociedade pós-verdade. Relatórios Obercom.

FISHER, D., (1982) O direito de comunicar: Expressão, informação e liberdade. Brasiliense.

Geidner, N. W., Flook, C. A., Bell, M. W., (2007). Masculinity and online social networks. Male self-identity on Facebook.com. Easter Communication Association 98th Annual Meeting.

Jenkins, H., Purushotma, R., Clinton, K., Weigel, M., & Robison, A. J., (2006). Confronting the Challenges of Participatory Culture: Media Education for the 21st Century. The MacArthur Foundation.

Lévy, P. (2001). Filosofia World. Instituto Piaget.

Paiva, A. M. V., (2018). Participação e Partilha de Conhecimento na Sociedade em Rede – os Contextos Educacionais Online (Dissertação de doutoramento, Universidade Aberta, Lisboa, Portugal).

Popesco, M., (2019). Personal Online Identity-Branding or Impression Management. Sciendo Scientific Bulletin 24(1), 67-75.

Vannuchi, C., (2018) O direito à comunicação e os desafios da regulação dos meios no Brasil. Galaxia. 38, 167-180.

Discurso de James Donnelly como membro no painel de discussão sobre o tema Crisis Communications 2.0 – https://www.youtube.com/watch?v=82X44S9pQcM&ab_channel=jamesjdonnelly

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