Autenticidade e Transparência na Rede
O desenvolvimento das ferramentas tecnológicas e de comunicação permitiu-nos, enquanto indivíduos, a transposição de várias componentes humanas para o mundo virtual. Refiro-me por exemplo aos hábitos, interesses conhecimentos, ou até mesmo relações. A tecnologia encurtou distâncias. Estamos hoje mais perto e ligados do que alguma vez estivemos.
Mas
será que o que somos em rede transparece o nosso “eu” no mundo real?
Geidner
et al (2007) revelou em estudos que, por norma, são construídas identidades
virtuais aumentadas de forma a compensar a falta de comunicação não verbal ou o
contacto visual. Fazer parte do ciberespaço, possibilita a criação de uma
identidade virtual, podendo ela corresponder, mais ou menos, às características
que apresentamos fora deste contexto. Neste sentido, o indivíduo cria uma
persona para que se possa revelar aos outros (Popesco, 2019) A meu ver, a
criação de um username diferente do próprio nome ou a utilização de uma
fotografia que não corresponde à imagem real, implica automaticamente a criação
de uma nova identidade, feita de forma consciente ou inconsciente. Fatores como
a presença assíncrona permitem que haja uma maior fenda temporal entre a
comunicação em ambiente virtual. Desta forma, podemos ponderadamente calcular e
escolher o que queremos transmitir aos outros, facilitando a manipulação das
características pessoais. (Barak, 2009)
Tal
como uma marca, nós escolhemos a imagem que queremos passar. “In other words, “personal branding” is seen as the way people market
themselves and their careers similar to the way companies manage their consumer
brand.” (2019,
p.68) O crescente uso das redes sociais potencia a dissimulação da identidade,
cuja intenção pode ser encontrada em diversos aspetos. Despoleta um efeito de desinibição online onde
o individuo revela uma maior abertura pessoal quanto à natureza do conteúdo,
bem como aprofunda a partilha de informações. Por outro lado, este efeito também pode conduzir a
comportamentos considerados destrutivos e agressivos – Acting Out (Barak,
2009).
A
comunicação ocorrida em contexto virtual é um ambiente clássico para o
preenchimento de lacunas em virtude do repertório psicológico de cada um. O ser
humano facilmente começa por fantasiar sobre a natureza dos outros incluindo
pessoas, ambientes ou objetos, através de narrativas, conceitos, explicações,
suposições ou crenças. (Barak, 2009) Ao experienciar a comunicação virtual, a
imaginação permite com que as comunicações se transformem em relações com
facilidade. “That is, they convert an exchange of messages into
interpersonal contact, which is accompanied by a broad range of emotions”
(2009, p.312) Estamos assim a assistir à virtualização das relações.
É
importante salientar que o que se passa na rede é uma ampliação do contexto
real em que vivemos. Seremos nós totalmente transparentes na realidade?
Queremos nós ser totalmente transparentes? Concordo com as palavras de James
Donnelly, numa discussão sobre o tema Crisis Communications 2.0 ocorrida em
2010, onde refere que podemos ser autênticos, devemos sê-lo, sem que tenhamos
que ser totalmente transparentes. Fazendo uma analogia, Donnelly refere que uma
empresa ou um produto deve ser autêntico e credível, mas não necessita de
mostrar cada uma das suas cicatrizes. O mesmo pode ser aplicado aos indivíduos
que coabitam em ambientes virtuais. Podemos manter a nossa autenticidade na
rede, refletir a nossa personalidade ou os nossos gostos, mas isso não implica
que tenhamos que ser totalmente transparentes revelando todos os pormenores sobre
nós. A meu ver, uma total transparência pode também por em causa a nossa
privacidade e se refletirmos sobre a questão, até que ponto somos totalmente
transparentes na realidade?
Segundo
Lévy (2001), “As palavras são impessoais. Os pensamentos são impessoais. As
emoções são impessoais. Cremos que são “os nossos” pensamentos, mas são também
os pensamentos da sociedade, da espécie, da biosfera, do universo” (2001, p.
192)
Atualmente
as repercussões das nossas palavras ou atos tem um alcance maior do que alguma
vez tiveram. As redes sociais colocam-nos a questão “Em que estás a pensar?” e
rapidamente o que estava no nosso íntimo é catapultado para o mundo exterior a
uma velocidade, por vezes, incontrolável. Este fenómeno reforça o papel de
aceleração das redes digitais.
A
horizontalidade das comunicações caracterizadora da sociedade em rede, promoveu
o surgimento de uma “cultura participatória” (Jenkins et al, 2006) onde, num
espaço de expressão livre, qualquer um pode produzir, transmitir ou receber
informação. Jenkins et al (2006) enumerou quatro aspetos fundamentais da “cultura
participatória”: afiliação, expressão, resolução colaborativa de problemas e circulação,
“remetendo-nos para a pertença e participação dos seus membros em comunidades
online suportadas pelos media sociais.” (2018, p.2)
Fatores
como a reciprocidade e a colaboração entre indivíduos estimulam o sentimento de
pertença ao grupo e são um terreno fértil para o aumento da partilha de
interações e conteúdos. Castells (2005) sublinha que em contextos de cultura
informativa e comunicacional desenvolvem-se aspetos fulcrais na socialização e
maior abertura a “expressões culturais” diversas. (2018, p.9)
Surgiu
a necessidade de criar um termo que descreve-se este novo fenómeno de conteúdo
gerado pelos usuários da Web 2.0., “produsage” (Bruns, 2011) cujo
significado remete para a construção colaborativa e continua de conteúdo
existente, em busca de melhorias adicionais. (2018, p.14)
Vivemos
um efeito de bola de neve com a presença da internet. Existem mais usuários,
que por sua vez geram mais interações e consequentemente aumentam a produção de
informação.
Mas
até que ponto esta disseminação de informação é credível?
Cardoso
(2006) alerta para a necessidade de haver um “domínio individual das literacias
necessárias, para interagir com as ferramentas de mediação, quer das que fornecem acesso à
informação quer das que nos permitem organizar, participar e influenciar os
acontecimentos e as escolhas.” (2006, p.44)
O
surgimento de um novo paradigma informativo requer a adoção de fórmulas que combatam
as lacunas que daí advém.
Esse esforço já tem vindo a ser feito. Num
artigo publicado por Vannuchi (2018) verificou-se que em 1948 a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, incluiu o Artigo 19 - Direito à Informação que
expressa “a liberdade de expressar opiniões sem interferência e de buscar,
receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e sem limitações
de fronteiras” (2018, p.169). No entanto, as mudanças tecnológicas adicionaram
novas dimensões aos direitos de informação, fazendo com que o Artigo 19 não
fosse suficiente para garantir o direito à informação e liberdade de expressão.
Em
resposta, nos 70 foi concebido o “Direito de Comunicar” que sublinha o
compromisso com a democratização da informação e com a multiplicidade de vozes,
entendendo o direito à informação também como a liberdade que o individuo tem
de produzir informação e não apenas consumir conteúdo realizado por terceiros. (Vannuchi,
2018)
Fisher
(1982) realça a importância da ética no processo de comunicação, devendo
assegurar maior justiça e equilíbrio dos recursos necessários para que haja uma
comunicação eficiente.
Outro
dos obstáculos relacionados com a autenticidade na rede, deve-se à distorção,
mais ou menos voluntária, da informação que nela habita. Como se costuma dizer,
quem conta um conto acrescenta um ponto e o fenómeno das fake news afeta
cada vez mais o domínio social e político.
Podemos
encontrar as motivações em interesses económicos de instituições jornalísticas
(veja-se o clikbait – produção de títulos sensacionalistas cujo intuito
é o aumento do número de visualizações e, por conseguinte, de receitas) ou
motivações políticas e ideológicas (promoção e disseminação de conteúdo que
beneficie interesses partidários). (Cardoso et al, 2018)
Segundo
Cardoso et al (2018) a resolução passa por uma atuação através de políticas
legislativas “de modo a resolver um problema considerado de cariz pública e de
presença generalizada” (2018 p.21), implementação de regulação pelas instituições
privadas (e.g., Facebook, Twitter) como a ”criação de algoritmos que
condicionem a experiência do utilizador” (2018 p.23) e finalmente potenciar o
desenvolvimento de uma literacia digital e cívica.
As
mudanças são constantes e inevitáveis. Urge a necessidade de encontrar soluções
para as questões que o século XXI coloca.
O
problema não está nas TIC nem na Internet, está sim na impreparação e
desinformação à qual somos reféns. Esse é o obstáculo que deve ser combatido,
para que todos possamos usufruir desta rede única que nos interliga enquanto
sociedade.
Ana Couto
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Discurso de James Donnelly como membro no painel
de discussão sobre o tema Crisis Communications 2.0 – https://www.youtube.com/watch?v=82X44S9pQcM&ab_channel=jamesjdonnelly
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